Fragmentos de memória: a luta por justiça e identidade em ‘Ainda Estou Aqui’, de Marcelo Rubens Paiva

Fragmentos de memória: a luta por justiça e identidade em ‘Ainda Estou Aqui’, de Marcelo Rubens Paiva

Um livro marcante é aquele que, logo no início, não apenas prende a atenção, mas envolve o leitor de maneira quase imperceptível, despertando algo que, inicialmente, parece sutil, mas que cresce e se intensifica a cada linha, a cada página percorrida. Em “Ainda Estou Aqui”, de Marcelo Rubens Paiva, essa experiência se dá de forma única, à medida que o autor nos leva a mergulhar nos fragmentos de memória de sua família, revelando a luta pela justiça e pela identidade no contexto sombrio da ditadura militar. A narrativa se desdobra como um retrato das emoções, das perdas e das batalhas internas que o autor trava, tornando a leitura sensorial e emocional. A cada página, o leitor se vê cada vez mais envolvido, sendo tocado por reflexões sobre a memória e o processo de reconstrução da identidade em meio às sombras da opressão política e da violência.

O capítulo inicial de “Ainda Estou Aqui” nos convida a uma reflexão sobre a memória, a identidade e a passagem do tempo, explorando a complexidade das relações familiares e a fragilidade humana diante da perda. De imediato, entendemos que o autor não vai apenas contar uma história, mas sim transformar lembranças e sentimentos em um testemunho marcante, mostrando que a memória não é uma simples gravação de fatos, mas uma construção contínua, sempre moldada por emoções, experiências e contextos sociais.

Ele nos lembra que as primeiras lembranças, muitas vezes vagas e fragmentadas, moldam nossa identidade e nossa visão de mundo. Com uma escrita que alterna entre a infância e a velhice, ele nos apresenta Eunice Paiva, sua mãe, uma mulher que precisou reinventar-se após o desaparecimento do marido durante a ditadura militar. Esse período sombrio do Brasil se torna parte essencial da obra, e, como na canção “Cálice”, escrita por Chico Buarque e Gilberto Gil, somos lembrados de que há momentos na vida em que o silêncio não é uma opção.

A narrativa de Marcelo também explora a luta de sua mãe contra o Alzheimer, uma batalha que traz um novo e doloroso inimigo: o esquecimento progressivo. Eunice, que passou a vida resistindo às perdas e lutando por justiça, agora enfrenta a perda da própria memória. Marcelo narra essa experiência com sensibilidade, como alguém que tenta segurar cada pedaço de história que a mãe começa a deixar para trás. As memórias, preciosas e fragmentadas, nos mostram que mesmo nas sombras da ditadura e nos desafios do Alzheimer, existiu uma luz, uma força que persiste em resistir ao apagamento.

Além de ser uma narrativa sobre o passado e a família, “Ainda Estou Aqui” também revela o próprio Marcelo Rubens Paiva e sua trajetória. Desde sua estreia com “Feliz Ano Velho”, em 1982, um relato autobiográfico que explora sua experiência com a tetraplegia, Marcelo se consolidou como uma voz singular na literatura brasileira. Sua escrita é direta e sincera, sempre atravessada pela sua história pessoal e pela força de uma vida que não se cala. Em “Ainda Estou Aqui”, ele revisita o desaparecimento do pai durante a ditadura, expondo o quanto essa ausência moldou sua vida e sua escrita.

A obra oferece uma análise sobre a tortura como uma prática sustentada por Estados autoritários ao longo da história. Ela coloca a tortura como uma “ferramenta de um poder instável”, algo que vai além das ações de indivíduos isolados, descrevendo-a como um sistema organizado que serve a regimes de poder. As palavras de Paiva ajudam a destacar a dimensão institucional da tortura e como, apesar de ser considerada um crime hediondo e inafiançável, persiste em diversas formas ao redor do mundo, tornando-se um sistema complexo e institucionalizado, mantido por uma estrutura de poder que ultrapassa a vontade de um agente individual.

Marcelo transforma seu desabafo em uma experiência de memória coletiva, fazendo-nos refletir sobre o passado do Brasil e o valor da liberdade. “Ainda Estou Aqui” é uma leitura que une memória e história, e ao mesmo tempo, é um convite a repensarmos nosso papel como cidadãos. Ao terminarmos o livro, fica a certeza de que é mais que uma história de dor e resistência familiar — é uma lembrança do valor do amor, da coragem e de que, mesmo em meio ao sofrimento, é preciso lutar para que vozes e memórias não sejam silenciadas.

Confira uma entrevista com o autor falando sobre sua obra:

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