Walter Salles e ‘Ainda Estou Aqui’: um filme sobre a força de uma família na ditadura

No universo audiovisual, a primeira impressão é fundamental. “A propaganda é a alma do negócio”, já diz o ditado, e poucos elementos são tão eficazes para despertar o interesse do público quanto o trailer de um filme. Esse termo, que deriva do verbo inglês “trail” – seguir, acompanhar –, foi criado para mostrar ao espectador uma prévia do que está por vir, oferecendo fragmentos cuidadosamente escolhidos da narrativa, cenas marcantes e trilhas sonoras envolventes que capturam a essência do filme e convidam o espectador a se conectar com a história.

Walter Salles e ‘Ainda Estou Aqui’: um filme sobre a força de uma família na ditadura
Crédito: Alile Dara Onawale / Sony Pictures

Às vezes, essa estratégia vai além e já sugere que a obra será uma experiência cinematográfica inesquecível. “Ainda Estou Aqui”, dirigido por Walter Salles, é um desses casos. A expectativa é estabelecida desde as primeiras imagens e trailers divulgados e se concretizam com as primeiras cenas reveladas no longa: uma mulher nada no mar de Copacabana, com o Pão de Açúcar ao fundo. Um helicóptero militar sobrevoa a cena, criando uma imagem inquietante, como se fosse um intruso no céu azul do Rio de Janeiro. Estamos em 1970, em pleno regime militar brasileiro, e com um impacto visual e emocional, o filme já prenuncia o drama que irá se desenrolar. É assim que Walter Salles captura o espectador desde o início, revelando a harmonia e a alegria de viver da família Paiva em meio ao contexto sombrio da ditadura, até que uma reviravolta muda para sempre o destino daquela casa que, até então, era sinônimo de união e liberdade.

Baseado na obra autobiográfica de Marcelo Rubens Paiva, o longa-metragem acompanha a narrativa do filme muda drasticamente com a intrusão dos militares na casa da família, transformando o idílio em uma atmosfera de terror. A cena em que Rubens Paiva é levado pelos soldados sintetiza o impacto avassalador da ditadura sobre a vida das pessoas comuns. A interpretação de Fernanda Torres como Eunice Paiva é especialmente poderosa: ela incorpora uma mulher que, apesar do medo e da incerteza, encontra força para enfrentar o sistema em busca de justiça. A relação com os filhos, especialmente com a filha Eliana, interpretada por jovens atrizes talentosas ao longo dos diferentes períodos, adiciona uma camada de humanidade e resistência ao filme.

Uma escolha estilística relevante são os saltos temporais que ocorrem após o momento de maior tensão, em 1971, levando o espectador a 1996 e, posteriormente, a 2014. Esses saltos visam mostrar o impacto duradouro do trauma na vida de Eunice e de sua família. A aparição de Fernanda Montenegro como Eunice mais velha em 2014 confere à trama um sentido de continuidade e de homenagem ao ícone da atuação brasileira, que já havia colaborado com Salles em “Central do Brasil”. As Fernandas estão incríveis! Elas transmitem uma intensidade quase sufocante com o olhar que deixa a gente sem palavras.

A trilha sonora é um destaque por si só. A presença de canções de grandes nomes da MPB, como “A Festa do Santo Reis” de Tim Maia e “As Curvas da Estrada de Santos” de Roberto Carlos, não só situa o filme no seu tempo histórico, mas também traduz o sentimento de um país que resistia e celebrava a vida, apesar da repressão. Esses elementos culturais servem para lembrar ao público que, apesar de todas as adversidades, a cultura brasileira continuava a florescer e a expressar os sentimentos de uma geração.

Do ponto de vista da narrativa, o filme pode ser entendido como um manifesto contra a repressão e a violência de Estado, mas também como uma celebração da resistência familiar. Eunice Paiva emerge como uma figura emblemática de resiliência e dignidade, que jamais desiste de reivindicar a verdade sobre o destino de seu marido. A cena final, que mostra uma foto de família, encerra a obra de maneira simbólica: a memória sobrevive, mesmo quando a presença física é apagada. A mensagem do filme é, assim, de uma esperança resistente, que nos faz pensar sobre as perdas irreparáveis e a importância de contar essas histórias para que o passado não se repita.

“Ainda Estou Aqui” fala diretamente ao coração, em um momento em que o Brasil revisita constantemente as consequências de seu passado. Mesmo com algumas escolhas narrativas que podem dividir opiniões, Walter Salles entrega uma obra comovente e politicamente necessária, reafirmando a importância de lembrar o passado e homenagear aqueles que, como a família Paiva, lutaram e sofreram, mas deixaram um legado de resistência e coragem.

Confira o trailer:

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