‘O Poço 2’: uma desconstrução da sociedade e da humanidade

por João Paulo Silva

“O Poço 2” é uma obra que vai além das expectativas convencionais de um filme de ficção científica, propondo-se a ser uma metáfora sobre as estruturas sociais, desigualdade e a complexidade da natureza humana. A trama, centrada na distopia de uma prisão vertical em que a comida é distribuída de maneira desigual, oferece um ponto de partida para uma reflexão crítica sobre a sociedade contemporânea.

O Poço 2 uma desconstrução da sociedade e da humanidade
Crédito: Divulgação/Netflix

O conceito do poço como uma representação hierárquica da sociedade é o que sustenta o filme. Cada nível reflete as camadas sociais, onde os privilegiados do topo desfrutam do excesso, enquanto os que estão nos níveis mais baixos lutam pela sobrevivência. Esta divisão é uma analogia clara à desigualdade econômica presente no mundo real, e o filme expõe as consequências desumanizadoras de um sistema que promove a concentração de recursos em poucas mãos.

A ideia de que a comida — ou melhor, a falta dela — desencadeia o colapso da moralidade, transforma a gula, o primeiro pecado capital, na base de todos os conflitos. Como já observou Thomas Hobbes em sua famosa frase “O Homem é o lobo do Homem”, conforme argumentei na resenha do primeiro filme publicada também aqui no Mais Minas, a escassez de recursos pode exacerbar o lado mais sombrio da natureza humana. A estrutura do filme coloca o espectador diante de questões sobre a fragilidade do comportamento humano e sobre como, diante de recursos limitados, o egoísmo frequentemente supera o altruísmo.

No filme, há uma clara transição do caos e da anarquia do primeiro filme para a tentativa de instaurar uma ordem moral com base na solidariedade, representada pelos Leais. Essa tentativa de criar um sistema de distribuição justa de alimentos, no entanto, é rapidamente corroída pela violência imposta pelos Ungidos, que acreditam que o bem maior justifica a opressão. A dualidade entre ordem e caos, entre individualismo e coletivismo, é explorada, destacando a falha de qualquer sistema que tenta impor moralidade por meio da violência.

A natureza da moralidade em situações extremas é outro tema central do filme. O espectador é confrontado com dilemas éticos: até que ponto a sobrevivência pode justificar atos violentos? Qual é o lugar da compaixão em uma sociedade onde todos lutam pela própria existência? A personagem Perempuán (Milena Smit), que inicialmente se submete às leis dos Leais para, mais tarde, rebelar-se contra a brutalidade, serve como um espelho dos conflitos internos de quem busca justiça em um mundo cruel.

A ambiguidade do final de “O Poço 2” é um dos elementos mais interessantes do longa. O destino de Perempuán e a misteriosa presença das crianças, além da figura messiânica evocada, são pontos que o filme deixa em aberto, permitindo múltiplas interpretações. A liberdade interpretativa oferecida ao público enriquece a experiência cinematográfica, fazendo do desfecho um convite para reflexão — não apenas sobre o enredo, mas sobre a própria condição humana.

Trata-se de um filme corajoso e impactante, que desafia o público a pensar além das aparências. Ao colocar em foco questões sobre justiça, moralidade e sobrevivência, o filme provoca debates essenciais sobre a nossa sociedade. Liberdade, revolução e coragem são as palavras-chave para entender a obra e sua capacidade de gerar essas reflexões, uma prova de sua qualidade e do quanto ele consegue engajar o espectador em níveis múltiplos — emocional, intelectual e filosófico.

O filme está disponível no catálogo da Netflix.

Confira o trailer oficial;