A sensibilidade poética de Alaíde Costa na canção ‘Foi só porque você não quis’

por João Paulo Silva

Há instantes em que o universo conspira e uma inspiração divina nos toca, possibilitando-nos criar obras-primas. Assim, os planetas se alinharam para que Alaíde Costa nos presenteasse com seu mais recente álbum, “E o tempo agora quer voar“. Produzido por Marcus Preto, Pupillo e Emicida, este trabalho é uma jornada rica em imagens e sensações.

A sensibilidade poética de Alaíde Costa na canção Foi só porque você não quis
Alaíde Costa - Crédito: Daryan Dornelles

Uma das faixas que mais se destaca é “Foi só porque você não quis”, composta por Alaíde Costa, Emicida e Caetano Veloso. A letra, repleta de metáforas e simbolismos, evoca um universo pessoal e introspectivo, mesclado a elementos do cotidiano e da fantasia. É um reflexo da capacidade de Alaíde Costa de capturar emoções com uma sensibilidade única.

Um desses temas autobiográficos abre o álbum. Alaíde conta que, quando preparava seu LP “Coração” (1976), ela e Milton Nascimento, produtor daquele trabalho, foram à casa de Caetano Veloso atrás de uma canção inédita. Acontece que não atentaram a um dos hábitos mais conhecidos do compositor e chegaram em seu endereço logo cedo, pela manhã. Desde sempre, Caetano nunca sai da cama antes do meio da tarde. Acabaram desistindo de esperar e foram embora sem a música. Tempos depois, num encontro casual, Caetano comentou: “Alaíde, pena que eu não entrei no seu coração”. A resposta veio rápida: “Não entrou porque não quis”. A partir dessa história, Emicida criou, junto com Alaíde, os versos que depois ganharam melodia de Caetano Veloso. Vale notar que “Foi só porque você não quis”.

A canção evoca um sentimento de infância e nostalgia através de referências a bandas marciais, cataventos, algodão doce e fogos de artifício. Esses elementos trazem à tona memórias de um tempo marcado pela inocência e pela alegria, momentos em que a vida era simples e cheia de pequenas maravilhas. A letra nos convida a revisitar esses tempos de pureza, lembrando-nos da importância de manter viva essa parte de nós mesmos.

A metáfora da flor que vence o cimento é uma das imagens mais poderosas na letra de Alaíde Costa. Simboliza a resiliência e resistência da vida e a capacidade de superar obstáculos, não importa quão insuperáveis possam parecer. O vento e o aroma de anis são invocações à paz e à serenidade, elementos que oferecem um contraponto calmante ao tumulto da vida moderna. Juntos, eles pintam um quadro de esperança e renovação.

O verso repetido “Se você não entrou no meu coração / Foi só porque você não quis” é um lamento de amor não correspondido. A repetição sublinha a dor e a frustração de um sentimento que não encontrou reciprocidade. Este tema ressoa com qualquer um que já tenha experimentado a vulnerabilidade do amor.

Frases como “eterna aprendiz” e “pai grande sempre atento” sugerem um processo contínuo de desenvolvimento pessoal e a importância das relações familiares. Alaíde Costa reconhece que o aprendizado nunca cessa e que as figuras paternas ou de orientação são cruciais nesse processo. Essa perspectiva de crescimento contínuo é um lembrete de que estamos sempre em evolução, moldados por nossas experiências e relacionamentos.

A artista também utiliza sua música como uma forma de arte proporcionando uma reflexão sobre o próprio processo criativo e a busca incessante pela beleza. Ela nos mostra que a arte é uma jornada de expressão pessoal, onde cada nota e palavra é uma manifestação de emoção e pensamento.

A sonoridade de “E o tempo agora quer voar” é uma fusão de elementos da música popular brasileira com influências de outros gêneros. Os arranjos e melodias complementam perfeitamente a profundidade das letras. A voz de Alaíde Costa, carregada de emotividade e expressividade, transmite a intensidade dos sentimentos explorados na canção, tornando cada audição uma experiência única e profunda.

“E o tempo agora quer voar” é uma coleção de reflexões que capturam a essência da experiência humana. Alaíde Costa nos oferece um vislumbre de seu universo pessoal, convidando-nos a explorar nossas próprias memórias, esperanças e questionamentos.

“Foi só porque você não quis” abre o álbum como um baú de memórias tocando o coração de quem já vivenciou a dor de um amor não correspondido e sente a nostalgia de um tempo que, infelizmente, não volta mais. A sinceridade e a vulnerabilidade com que Alaíde Costa interpreta fazem desta faixa uma das mais marcantes do álbum.

Ouça:

author avatar
João Paulo Silva
João Paulo Silva, nascido em Barueri/SP e bacharel em Letras pela Universidade Estácio de Sá, é atualmente pós-graduando em Revisão de Texto pela PUC Minas.